quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Relato Paris Brest Paris 2011- Rafael P. Castro

Eu poderia começar este relato dizendo que o Paris-Brest-Paris (PBP) é um brevet 1200 extremamente difícil. Que para superar as adversidades surgidas durante a prova, além do percurso difícil, sinuoso e ,muitas vezes, de asfalto rugoso, necessitamos algo sobrenatural, necessitamos de um espírito de superação acima da média, talvez até da ajuda Divina.

Não sei como os outros ciclistas sentiram-se durante todo o brevet, não posso julgá-los. Eu, porém, posso garantir que em momento algum me senti diferente do que sinto quando me divirto muito.

Talvez eu seja uma “tipo” bem sucedido de masoquista. Nunca, na minha vida de esportista amador aceitei o sofrimento sem um propósito justo. Já desisti de brevets sem culpa. Sempre evitei os riscos desnecessários, e no PBP 2011, não corri nenhum tipo de risco... Foi só diversão, apesar de pequenos contratempos, que, ao surgirem, me irritaram. Porém, logo percebi que se os mesmos não houvessem, não teria a menor graça pedalar 1230 km.

O primeiro relato de um PBP que li foi o do Luiz Faccin, dramático! Seria meu PBP também recheado de problemas e dificuldades?! Não foi...

No meu primeiro dia percorri 494 km, até o dormitório em Saint Nicolas-du-Pélem. Decidi que não dormiria antes de chegar a este PA. Cheguei 2 horas antes do meu previsto, um pouco cansado, mas ainda me sentindo muito bem. Tomei um banho e ao deitar começou um intenso temporal. Não consegui dormir direito, preocupado com a estrada lá fora e lembrando do drama que os brasileiros passaram em 2007. Depois de 4 horas parado, não podia mais ficar no PA, então decidi pedalar. Foram duas horas de chuva intensa e de escuridão assustadora , quase não via as placas de sinalização... bebia a água da chuva, tão forte era o “caldo”! Cheguei a PC de Carhaix-Plouguer (km 527) às 2:30 da manhã, jantei e segui viagem. A chuva parou, mas eu continuava encharcado. Ás 8 horas entrei na cidade de Brest, sob chuva fina e frio, acompanhado de uma amiga da Nova Zelândia (que enfrentou o temporal ao meu lado), um ciclista espanhol e um japonês (que não entendia nada, nem o que estava fazendo naquele brevet, acho que ele estava “zonzo” de cansado e sono).

Meu retorno me guardou uma surpresa inusitada: hiperacidez gástrica! Nunca havia tido em qualquer brevet. Não conseguia mais beber água, e parei na cidade de Landerneau (22 km depois de sair de Brest) para comprar pastilhas anti-ácidas. Foi meu primeiro momento de interação mais sério com o povo francês. Eu era um alienígena, uma espécie de anti-ciclista do Tour de France, mesmo assim, percebi que minha presença enriqueceu a vida daqueles moradores, e, enquanto eu procurava uma farmácia, pude conversar com uma jovem moça (que me orientou muito bem o local da única farmácia aberta) e um senhor gentil e prestativo, que logo reconheceu meu objetivo: “Paris-Brest!!”. Interagir com os franceses é imprescindível, digo até que: “quem não interage com a população não pedala PBP...”.

Voltei para estrada somente sob efeito de omeprazol, pastilhas só encontrei na próxima e linda cidadezinha, chamada Sizun, que aliviaram totalmente meu mal estar gástrico e me recolocaram no brevet com toda minha energia. O tempo melhorou muito e o sol aparecia cada vez mais intenso. O percurso continuava sinuoso, o asfalto rugoso e meu ritmo cada vez mais preguiçoso. Eu parava em quase todos os belos locais que encontrava para fotografar e filmar... Não podia deixar de registrar minha passagem por lá. Fiz uma boa “ida” e a necessidade de retornar pedalando forte não mais existia: foram 622 km em 38:30 minutos - 1:30 abaixo do previsto – até Brest).

Meu próximo objetivo era chegar a um PA dormitório em Quedilac, no km 840, até às 00:00 horas. Cheguei às 23:40... tranquilo! Senti sono antes deste ponto, e como bom ciclista PBP dormi por 15 minutos escorado num muro a beira da estrada. Objetivo alcançado, bem alimentado, dormi até ás 3:30, e retornei minha viagem. Ás 5:00 fiz um registro de uma cidadela medieval (vídeo), linda... Eu era coadjuvante, o silêncio da madrugada o protagonista!
A manhã chegou com sol forte e clima perfeito para pedalar, as cidades que eu cruzava eram todas praticamente iguais, porém todas lindas. Cheguei a Fougeres às 8:00 horas, tomei um grande e gostoso café e paguei somente 3,80 Euros (o restaurante mais barato do PBP)... incrível!

Fotografias e paradas se acumulavam, meu ciclismo virou passeio dominical, até eu chegar em Villaines-la-Juhel (km 1090)... Almocei, virei astro do ciclismo randonnée mundial (a recepção é fantástica e os moradores apaixonados por nós). Às 15:30 retornei minha jornada rumo a Paris, pedalando sobre uma colina e inspirado pela paisagem rural francesa. Já pedalava confiante no sucesso e me senti mais a vontade para pedalar forte nas subidas. Na chegada a Mortagne-au-Perche tem uma imensa e íngreme subida... nela, testei minha capacidade física, subi forte e de pé na bike, ultrapassando alguns fatigados randonnées. Confirmando: os próximos 140 km seriam facilmente transpostos!

Como eu fui tolinho em pensar em facilidades num PBP! Pedalar uma quarta noite, depois de 1100 km acumulados não é tão fácil quanto eu imaginei. Nas longas subidas e descidas que me afastavam de Mortagne, comecei a sentir sono, e eram apenas 20:30 da tarde... A floresta é densa naquela região, os pássaros cantam para dormir, e os sons atraem “espíritos”, que se materializavam na minha frente e me proporcionaram um desagradável desconforto na alma.

Parecia que nunca me afastaria daquela “floresta negra” e comecei a ter alucinações... Pedalava forte atrás de qualquer um que me ultrapassasse, tentando evitar o sono. Não adiantou, e antes das 22 horas já estava eu novamente a beira da estrada dormindo num confortável colchão de grama e terra batida.

Dormir a beira da estrada é “chique” no PBP, acho até que é necessário! Minha amiga Neo Zelandesa havia me dito isto: “deixei meu marido no hotel e o proibi de me acompanhar. Quero dormir na beira da estrada, nas calçadas, onde eu puder!”

Pedalar o PBP sem qualquer apoio é o suprassumo do desafio... Eu sinto orgulho de ter conseguido isto, tenho certeza que foi meu maior prêmio!

Com muito esforço eu cheguei a Dreux, um PA a 65 km da Chegada... A estrada não era muito agradável e a noite prometia ser fria. Eram quase meia noite e fui dormir após jantar. Não havia lugar, dormi no carpete dentro do ginásio. Acordei 1 hora e meia depois assustado e sem saber direito onde eu estava. Já me encontrava sob efeito do cansaço e falta de sono, e demorei a me sentir capaz de pegar a estrada novamente. Eram 3:00 horas e nada de encontrar parceria... Fui atrás de um casal, mas a mulher não se sentia forte o bastante para pedalar e nosso ritmo caiu. Com isso o sono voltou. Por sorte um francês cruzou rápido por nós e eu o acompanhei... Encontramos outros ciclistas, pedalando lentamente naquela estrada no meio do “nada”... Demorei a entrar nos arredores de Saint Quentin, e sem eu mesmo perceber já estava a 20 km da chegada... Uma última longa e forte subida nos esperava. Alcançamos um ciclista num triciclo “style” que falava como se estive brigando com nós... Eu não entendia nada! Seguimos subida a cima - “abranjo” é moleza perto desta subida – e, finalmente ela acabou!

Relaxado entrei no subúrbio de Paris, com um pouco de dor na panturrilha esquerda e a “poupança” com sequelas de 1230 km de atrito... Ótimas lembranças de toda aquela aventura vieram a tona e aquele momento do randonnée se transformou num saudoso e desesperador final: pena que acaba!

Mas, por que acaba?! Ainda não sei responder... O máximo que consigo concluir é que o PBP acaba para podermos pedalar outro 4 anos depois!

Percepções sobre o Paris-Brest-Paris

Preparação:

Não precisamos nos dedicar ao treinamento tanto quanto imaginamos. Duas vezes por semana de ciclismo está de bom tamanho. Três sessões de treino é mais indicado para não correr riscos desnecessários e ainda aumentar a resiliência psicológica.
Treinava 120 km sábado, sem paradas ou descer da bike, a fim de ganhar resistência aeróbica, muscular localizada e resistência orgânica (geral), em percurso com longas subidas.
No domingo realizava mais um treino de 80 km no mesmo estilo, porém em percurso plano e sem muito esforço físico.
No meio da semana pedalava no rolo de treino, no mínimo 30 e máximo 60 minutos.

Bicicleta, alimentação, equipamentos e vestuário:

A bicicleta não pode ser de “supermercado”, mas um boa “speed” de 8 velocidades já é suficiente. Alguns brasileiros usaram MTB e concluíram o PBP com sucesso.
Recomendo levar barras de proteínas e sachês de gel com maltodextrina (testados no treinamento previamente). Usei 5 barras de proteínas e 15 sachês de gel, apenas. Comi em todos os PCs do PBP e também em vários pontos do percurso. A cada 50 km, no máximo, encontramos locais disponíveis para alimentação (no mínimo um “café au lait” com “croissant”). Não encontrei “Gatorade” a vontade como aqui no Brasil, tomei coca-cola, o que provavelmente ajudou na hiperacidez gástrica, portanto, sugiro suco e água.
Alforges pesados não foram necessários para mim, levei um alforje de guidão eu um de canote (que eu mesmo fiz em casa com uma “necessaire” - ficou leve e espaçoso, com isso economizei no peso do rack traseiro).
Chaves e ferramentas, só aquelas que você saiba usar, de nada adianta raios extra e chave de raios se não se sabe usar. A cada PC tem mecânicos, então, relaxem. Se a bike quebrar a ponto de não poder levá-lo até um PC é porque Deus assim o quis. O que não tem remédio, remediado está! Levei também um pneu extra, 4 câmeras reservas e kit remendo para câmera e manchão - para possíveis rasgos no pneu, que não foram usados, pois não furei nenhum pneu.
Vestuário deve ser de ciclismo, para evitar maiores problemas, como: assaduras, calor ou frio excessivo. Alguns ciclistas nem sapatilha usam e também concluíram o desafio. Não troquei de bermuda nem de camisa - eu uso cuecas “boxer” por baixo da bermuda - então, apenas as troquei todo dia. Levei 3 cuecas e 3 pares de meias sobressalentes. Não joguei fora, como me sugeriram, guardei em saquinhos plásticos, sem traumas ou vergonha. Acabei não trocando todas as meias, pois, depois da chuva, pedalei 2 dias sem meias, o que garantiu pés mais aquecidos até a secagem completa das sapatilhas.
Usei corta-vento, pernitos e cobre-botas a noite, e, durante a chuva, uma capa-de-chuva que não adiantou nada, apenas preveniu a perda de calor, tamanho o “caldo” que peguei. De dia, usava apenas camiseta e bermuda, luvas e capacete. O tempo ajudou, fez muito sol depois da chuvarada.

Apoio:

Não precisamos, garanto. E até mais gostoso pedalar 1230 km sem qualquer apoio. Todo PC tem inúmeros “motorhome” com ciclistas sendo massageados, com comidinha especial, familiares bajulando... Não precisamos disto! Eu, e tantos outros, preferiram dormir na grama, nas calçadas, nas cabines telefônicas e até caixas eletrônicos de bancos 24h. É fascinante como nos tornamos mais humanos e menos “dengosos” a medida que o brevet se desenrola. Também há ótimos dormitórios com opção de banho, por apenas 3 euros, em postos oficiais do PBP.
Levei comigo: escova de dentes, creme dental, sabonetinho e um barbeador descartável. Tomei banho no km 494, de chuva até o km 600 e fiz a barba em Brest. Escovei os dentes, até duas vezes por dia. Banheiros estão disponíveis a vontade nos PCs e PAs oficiais, além dos “matinhos” estratégicos que são infinitos! Levem consigo lenços umedecidos, para usarem como PH e outras necessidades íntimas... Acondicionem hermeticamente e “voila”!

80 horas, 84 horas ou 90 horas:

Há três largadas, conforme o nível de condicionamento dos ciclistas. 80 horas, para os feras, que largaram às 16 horas de domingo. 84 horas, para os “menos” feras, e que largaram 5:30 da madrugada de domingo para segunda e a famosa turma das 90 horas, que largou a partir das 18 horas de domingo. Está última, por ter mais ciclistas, se desenrola em grupos de 600 ciclistas a cada 30 minutos depois das 18 horas e mais uma largada, no mesmo estilo, a partir das 21 horas. Sugiro sair nas duas primeiras largadas a partir das 18 horas.

Aqui vai o melhor conselho que posso dar a qualquer ciclista:

Treine tranquilamente, classifique-se, e, não importando se vai ou não concluir o PBP em 90 horas, vá a Paris! Pedale o Paris-Brest-Paris... Conclua, independente do tempo. O objetivo são as 90 horas, mas, se não der, tudo bem... Apenas pedale, curta, participe, interaja, conclua em 100 horas, se for o caso, mas conclua!
É uma experiência que todos os ciclistas devem ter... O apoio nos PCs e PAs só termina quando o último ciclista das 84 horas passar, e não esqueçam, eles largam quase 12 horas depois da primeira largada das 90 horas. Então, sempre terá gente na estrada para aplaudi-lo, para ampará-lo e para o tradicional apoio: “allez”, “allez”... Portanto, allez!

Para ver as Fotos: Clique Aqui!

Rafael Pereira de Castro

4 comentários:

Francisco Aureo disse...

De muito valia o teu relato. Excelente!

Rafael P. de Castro disse...

Obrigado Franciso, se desejar conversar, meu e-mail é:

rafaelcastro.poa@hotmail.com

Anônimo disse...

Excelente relato, Rafael! Muito show..
Estou me preparando para o meu 1º PBP em 2015.. estou treinando super tranquilo como você sugeriu, sem desespero. Espero que dê tudo certo e, com certeza, nos encontraremos por lá.

Grande abraço!

Fábio Calderaro disse...

Excelente relato, Rafael! Muito show..
Estou me preparando para o meu 1º PBP em 2015.. estou treinando super tranquilo como você sugeriu, sem desespero. Espero que dê tudo certo e, com certeza, nos encontraremos por lá.

Grande abraço!