quarta-feira, 2 de março de 2011

Relato Brevet 600- Huli Huli

Huli Huli

Pois podem acreditar: foram 602 km, em uma jornada de 38 horas, que
custaram alguns fios de cabelos do fundo da orelha. Não posso dizer
que foi moleza, pois o percurso e as condições de clima foram pensados
para testar a diferença entre homens e meninos.

Percorremos uma região lindíssima, no planalto médio do Rio Grande do
Sul, com sua topografia agressiva, alternando altos e baixos, com
variação que chegou a 500 metros de altitude. De brinde, todas as
estações do ano, apresentadas da forma mais dura e exigente que um
ciclista pode querer, pra testar se gosta mesmo desta maravilhosa
forma de ir e vir. Chuva, frio, calor, vento, asfalto esburacado,
caminhões apressados, são os parceiros de viagem, para aqueles que
provaram o sabor da aventura sobre duas rodas, impulsionadas por
pernas resistent es, e um desafio de testar os limites da paciência e
persistência.

Como fomos 'censurados' pelo aparelho de repressão e insegurança do
estado, a prova teve um número reduzido de participantes, vindos de
cinco estados, incluindo-se alguns gaúchos, de cidades distantes, que
preferiram fazer a prova sem identificação e divulgação, uma vez que a
oficial foi transferida para um futuro próximo. Uma coincidência de
data com uma corrida de caminhões, na cidade vizinha, expôs a
insegurança que os ciclistas enfrentariam, por andar em estradas cujas
condições de acostamento e apoio são precárias, especialmente na
região da cidade que nos acolheu. Por isso, a polícia disse que não
poderia oferecer o suporte logístico, em caso de acidentes com os
envolvidos no passeio. Como não precisamos de autorização de quem quer
que seja, juntamos doze loucos apaixonados por liberdade, sendo que um
d eles era mais privilegiado, pois pedalava numa bicicleta reclinada,
daquelas que o ciclista anda com as pernas para o ar.

Às três e meia da madrugada, demos a largada para a maratona, numa
noite fria e estrelada, na perspectiva de uma longa convivência com as
condições climáticas. Afinal, tínhamos quarenta horas pela frente, sem
muito o que fazer, a não ser pensar no ponto de partida, onde estaria
garantido o refúgio e descanso, após a jornada concluída, ou o
infortúnio da desistência. Todos sabíamos que só tínhamos uma
alternativa: pedalar, curtir e esperar. O silêncio da noite era
quebrado pelas rãs, escondidas nos brejos, ou os cães da beira da
estrada, que faziam festa diante da nossa presença e intromissão na
paisagem. De vez em quando um veículo motorizado se apresenta,
iluminando a estrada e deixando seu rastro de som. Durante a noite,
principalmente pelo fato de haver pouco m ovimento, costumamos ter
segurança em andar sobre a faixa de rolamento, sem sermos incomodados,
mas já tivemos casos de caminhões que se aproximam buzinando, avisando
que não vai mudar de faixa para nos ultrapassar.

Na medida em que o sol vai aparecendo, a paisagem se apresenta com
mais intensidade. A paisagem rural, com seus cheiros, cores e
movimentos, vai servindo de motivação, como um filme em câmara lenta,
onde as imagens vão mudando tão lentamente quanto se queira, ou uma
montanha adiante diminua a intensidade da curtição. Estas, quando
surgem, são sempre motivo de reflexão e dor, fazendo com que a
pedalada assuma o ritmo da respiração, e a pressa se torna inimiga da
satisfação. Respirar, curtir, relaxar... Assim passam os quilômetros e
o tempo, atingindo-se as metas, na medida em que se avança. A cada
posto de controle, um carimbo, e a certeza de que já estivemos mais
longe . Esta, aliás, é a tônica do movimento: não importa quando, não
importa como. O importante é atingir o objetivo. Respeitando-se, é
claro, os limites pré estabelecidos.

Tendo em vista as características do grupo, formou-se, quase que
naturalmente, três pelotões. À frente, seguiam os mais aptos, em
número de quatro. Depois, outros seis, ditos experientes e
persistentes. Mais atrás, o carioca, com sua cadeira de rodas e, por
último, um camarada que veio mais para tirar fotografias da paisagem
do que para pedalar. Literalmente, um cicloviajante. Nossa equipe
Audax Floripa tinha dois representantes no primeiro bloco, e os outros
dois no segundo. Assim tem sido a brincadeira, com nosso dois bravos
representantes sempre chegando em primeiro e segundo, enquanto nós
outros dois nos contentávamos em completar mais esta etapa. Assim
seguia a caravana, num dia que foi ficando nublado, com nuvens negr as,
vindas do centro do continente, avisavam que iam nos fazer companhia.

A partir da hora do almoço, a chuva chegou intensa. Daquelas trovoadas
rápidas, que trazem consigo a chuva persistente, avisando que não
adianta parar para esperar uma estiada. Portando, só resta encarar e
sorrir, seguindo com muito mais atenção, tendo em vista que tudo fica
mais difícil, em virtude da precariedade dos sistemas de asfalto e
drenagem das estradas. Buracos, asfalto solto, cacos de vidro, pedaços
de pneus, com seus cabelos de aço convidando o pneu para um encontro,
tachões, sujeira de toda ordem, começam a ganhar importância,
especialmente quando a noite cai e a chuva continua caindo. A roupa
molhada, a pouca luz dos faróis, o frio, fazem com que a vontade de
chegar se acentue na mesma dimensão que crescem as dificuldades. Todo
cuidado no pedalar é necessário, principalmente para se evitar o pior,
que é um tombo ou um pneu furado. Nestas condições precárias, chegamos
na cidade e Encantado, onde conheci a mais larga e mais bem localizada
ciclovia das cidades que já passei. Uma verdadeira avenida, que mantém
os ciclistas bem longe dos motoristas. Ali estava programada a janta e
foi onde encontramos a equipe que seguia à frente, que sofrera uma
série de transtornos de pneus furados, motivados pelas péssimas
condições da estrada, que além de furar a câmara rasgou o pneu, de uma
das bicicletas.

Em virtude da precariedade das condições das estradas, o organizador
resolveu retirar um trecho onde havia e proposta de uma subida
extremamente íngreme, a um lugar inóspito e quase inabitado, por
outro, da mesma distância, no final da prova. Com isso, a chegada no
ponto de apoio, para dormir, ficou antecipada. Assim que largamos,
após a refeição, passamos pelo pelotão de vanguardistas, para dos,
trocando pneu. Como estavam ali os melhores, os demais preferem
seguir, pois não havia o que fazer para ajudar, Seguimos,
fortalecidos, para atingir cerca de 350 km, já com noite estrelada,
pois as nuvens já haviam se precipitado. Atingimos o pouso de sono
após 21 horas de pedaladas. Posso dizer que esta chegada foi
comemorada como uma vitória. Depois de um banho, três horas de sono
tentaram restabelecer o corpo, para a segunda etapa, no dia seguinte.

Quando acordamos, verificamos que o grupo da vanguarda havia chegado
quase duas horas depois de nós, enquanto que os dois que ficavam para
trás recém haviam chegado. Ao pegar a bicicleta, percebi que o pneu
dianteiro estava vazio. O atraso, para a troca, fez com que o nosso
grupo se dividisse, ficando três em cada bloco. Saímos, sem tomar
café, o que só aconteceria depois de quase quatro horas e cem
quilômetros pedalados. Até ali, o suporte físico foi dado pelas
cápsulas de guaraná, vitamina C e isotônicos. Para contrabalançar, o
sol resolveu nos acompanhar desde cedo, anunciando um dia lindo e
ventoso. Vento, como sempre, vindo ao nosso encontro, só pra tornar
tudo mais interessante.

Nada está tão longe que não se atinja, ou tão duro que nunca acabe. De
pedalada em pedalada, as paisagens vão ficando na saudade. As estradas
interioranas estavam com aquela cara de domingo de manhã, enquanto as
vias principais tinham aquele ritmo acelerado de sempre.
Coincidentemente, quanto mais movimentada a estrada, mais buracos e
ausência de acostamento ela tinha. Tudo dentro dos padrões do trânsito
brasileiro, o que não é nenhuma novidade. Num ponto de apoio foi
servida uma macarronada com carne moída, teve o sabor de uma refeição
dos deuses. Não houve uma única sobra nos pratos. Naquele momento, era
tudo o que precisáv amos e desejávamos: carbohidrato e proteína. Depois
do rango, seguimos para a última etapa, cada vez mais próxima do
final. Encontramos o pelotão de 'especialistas' a uma distância de uns
trinta quilômetros de nós, visto que haviam saído quase duas horas
após a gente. Faltavam cento e setenta quilômetros, e um prazo de sete
horas e meia. Tudo dentro dos planos.

Depois de muitas subidas e descidas, chegmos ao final da jornada, com
um tempo de trinta e oito horas, dentro das quarenta prevista. Desta
vez não houve mutilações expressivas, a não ser os calos na mão, junto
aos punhos, e as assaduras de praxe, nas partes mais vulneráveis. Nem
com as pomadas bundex, ou pacu assado, consegue-se evitá-las, visto
que chuva, suor e atrito constante vão deteriorando os tecidos
lentamente. Mas, entre mortos e feridos, saímos todos ilesos, sem
qualquer registro de transtornos, ou acontecimentos relev antes
indesejáveis. Desta vez, aconteceu algo considerado impossível, visto
que a Equipe B, dos velhinhos indomáveis, chegou com uma hora de
vantagem sobre os dois guerreiros melhor preparados. Mais um motivo
para as brincadeiras e comemorações, visto que nós dois já havíamos
tentado esta prova, no ano passado, ficando pelo caminho, por cansaço
e transtornos pneumáticos.

Agora, todos havíamos atingido mais um desafio, configurado numa
medalha de lata, e um certificado colorido pelo feito alcançado. Mas,
o que não tem preço, ou classificação é a alegria da confraternização
e a satisfação de estarmos vivos, livres e leves, para curtir
intensamente esta brincadeira. Agora, começa a fase mais dura, que são
os treinamentos para a próxima etapa, com o dobro da distância e no
outro lado do Atlântico. Até lá, vamos ver quantos obstáculos teremos
que vencer. O importante é contin uar treinando, pedalando e sonhando.

Saudações audaxiosas

Luiz Pereira
Equipe Audax Floripa

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