sexta-feira, 6 de junho de 2008

Relato de Omar Torriani sobre o Audax 300 SCS

Relato enviado para os grupos audaxbr e pedalajeado.

Lotário e outros prezados Audaxiosos!

Infelizmente somente hoje pude achar tempo para escrever e me
manifestar sobre o Audax 300 de Santa Cruz do Sul. Para quem não
sabe, eu caí por causa do nosso amigo Zorro!
Nunca tive problemas com cachorro, mesmo o Zorro. Aliás, nem sabia
direito onde era seu habitat. Foi o Audax mais frio que já fiz e há
mais de 4 anos que pratico Audax. Estava tudo formidável, a
organização e até mesmo o frio. Acho que Audax sem algo diferente
não tem graça. Tem que ter alguma coisa para contar, senão, fica
naquele, "larguemo, pedalemo e cheguemo"! Dos últimos anos, este é o
que menos pedalei e me preparei. Fui mais por causa dos parceiros
Zappe e Guaraci, que pelos quais dou um dedo para pedalar com eles.
Fui com o intuito de fazer "na manha", como recomendou o Zappe.
Vamos vazer para chegar e acho que seria mais um desafio para mim
que sempre gostei de andar mais rápido, conter o ímpeto de
sair "fedendo".
Todos agasalhados, com exceção do Bagatini (segunda eu estava lá no
Jeremias em Caxias e 2 caras que não participaram do Audax
comentavam sobre os trajes do Bagatini- o homem tá cada vez mais
famoso). Largamos e foi tudo bem, parecia que estávamos com as
roupas certas, pois com o vento ao andar, não aumentava o frio pois
o exercício nos aquecia e contrabalançava. O problema foi na subida
da serrinha, logo na largada, que nos fez suar em bicas e encharcar
as roupas por dentro. Depois na descida já deu para ver o que seria.
Com a madrugada o frio aumentou e, à cada parada a luta era para se
re-hidratar e alimentar sem esfriar o corpo, pois a retomada era
triste. As luvas depois de molhadas por dentro e por fora, não
aqueciam mais. Mas tudo era administrável, com exceção das descidas
que, quanto mais íngremes, mais frio provocavam e o bater de queixo
era inevitável. Às vezes a gente gritava: Uhhhhuuuhhhuuuhhuuuuuu!
Ou, Ai, ai, aiiiiiiii fia da puuuuuuu.... O fato é que ajudava e
aliviava a dor que causava no rosto, pescoço, pés, etc. A partir das
4 e meia da manhã o grito também ajudava a espantar o sono.
Uma coisa interessante que o frio provocou é que desde o início o
nosso grupo saiu bem mais quieto que o habitual. Normalmente as
primeiras 2 horas é de brincadeiras, piadas e galinhagem, desta vez,
no trevo da RS, já estávamos calados e o silêncio tomou conta. Assim
permanecemos pela maior parte das 8 horas e meia que pedalamos, com
exceção de alguns momentos que algum de nós se lembrava de algo e
comentava e os outros riam, diziam alguma coisa e logo voltávamos ao
transe de pedalar e se encolher com o frio e se refugiar nos
pensamentos para aplacar o cansaço, a dor e o frio.
A organização e presença do Faccin, o tempo todo, apoiando e
protegendo, como sempre, foi fora de série. Até escolta contra o
cachorra mardito ele fez na ida. Quando passamos pelo Zorro, o
Faccin estava esperando na encruzilhada. Ao passarmos ele veio por
trás, com os faróis altos e assim que vi o mardito arremeter e
surgir desgraçadamente das macegas, esprintei e escapei e o Faccin
meteu o carro por cima dele, pena que não o atropelou.

Fomos bem até São Jerônio, 100km percorridos em quase 5 horas, uma
boa média com todas as paradas. Isto nos colocava dentro do nosso
plano de corrida. Mas agora tinha um trecho de retorno em sairíamos
da beira do rio e subiríamos de volta para uma cota mais alta. Não é
significativa, mas tira o impulso e a pedalada não rende. Assim como
sentido contrário a gente manda vê e acha que é o tal, na volta a
coisa pesa mais e, além disso, estava muito mais frio e não haveria
PC no meio, sendo o tirão de 86 km.
Assim zarpamos do Jóquei Clube de São Jerônimo às quatro e pouco da
manhã. Saímos entreverados num pelotão de uns 8 ciclistas incluindo
nós. O Zappe mandou vê e resolveu puxar o pelotão. Fui no vácuo,
administrando para não me desgastar. Senti que o ritmo estava puxado
demais e avisei aos 2 que se quisessem seguir assim que fossem, pois
precisava me poupar para os 200km que ainda restavam. Pois foi deixá-
los se afastar lá pela ponte do Jacuí e eles pararem no primeiro
posto de Gasolina. Depois disso nunca mais se aproximaram. Achamos
estranho aquilo e foi bom segurar o ímpeto para não nos
desgastarmos. Fomos bem até o cubo dianteiro do Zappe começar a
roncar. Paramos várias vezes para verificar, pois parecia que nos
baixios, com o frio, o barulho aumentava. Já tinha uma estratégia
para caso de a roda roncar de vez: o Zappe ficaria e eu e o Guaraci
seguiríamos até o PC com a roda estragada e avisaríamos para
trocarem a roda e traríamos de volta. Só que no meio do caminho um
de nós pararia e esperaria até o outro voltar e trazer. Assim, os
dois fariam 2 vezes somente metade do percurso a mais e
resgataríamos o Zappe. Mas, no fim, não precisamos.
É interessante como é crítica a chegada no Pesque-pague: a ânsia por
chegar é enorme e à noite a imprecisão das leituras de instrumentos
e até da localização nos prega peças e no final sempre tem uma
grande subida antes do PC. Desta vez o pior é que tinha um ciclista
uns 800m à nossa frente e sempre víamos que ele não parava e seguia,
o que significava que a estrada continuava. As luzes ficaram tapadas
pelas árvores, de sorte que só poderíamos saber que estávamos ali
uns 100m antes. Chegamos ao PC eram umas 5 horas da madrugada e
fizemos uma parada para meter um frukito, barra de cereal, umas
mariolas e zarpar.
Saímos de lá na euforia de que faltavam apenas uns 40 km até o café
da manhã e no máximo 2 horas de escuridão e frio. Mas tinha antes a
descida logo após o PC e com o corpo frio foi mais tremedeira, bate-
queixo e gritos: fia da puuuuuu!!!!
De obstáculo pela frente teríamos apenas a serrinha de Vale Verde,
que deste lado é mais curta, mas mais íngrime. O negócio seria
chamar a coroinha e subir devagar e sempre. A vantagem é que não
teria o sol inclemente das provas de 200km que a gente passa por ali
pelo meio-dia e o sol rachando o capacete.
Seguimos em marcha-batida, devorando as coxilhas e cortando a
cerração, apenas despertados de nosso transe pedalístico por algum
ônibus que desafiava a madrugada e o frio. Eu nem me lembrava mais
do Zorro, o maledeto cachorro que nos incomodou na vinda, estava um
pouco cansado e a dor que tinha na coxa direita tinha aliviado. Da
mesma forma a dor que sentia nos pulsos passara. Estava
administrando a corrida e daria para levá-la a bom termo. O sono
começava a pegar, cheguei a temer uma dormida na bike. Mas puxava
conversa com os guris e mandava pedal.
Lá pelas tantas o sol começou a se pronunciar, quebrando a cerração
e a geada, meio preguiçoso, mas dava sinais de vida. Estávamos
eufóricos que o pior já tinha passado e que agora era só administrar
o resto. Os faróis já nem mais faziam efeito e nem se arriscavam a
brigar com o poder do rei sol que não aparecia, mas começava a
anunciar-se por meio dos reflexos no firmamento. Longe no horizonte,
ainda se via algumas estrelas teimosas que queriam apreciar o
alvorecer e a geada, bem como a lua crescente que nos acompanhou
por algumas horas pela direita.

Nossa euforia durou pouco e nos calamos novamente, afundei em meus
pensamentos e mantive o ritmo das pedaladas, só pensava no café
quente que me esperava há uns 30km dali.
Eis que o silêncio é quebrado por um grito de pavor:
- Olha ali o cachorro! Grito o Guaraci.
Nesse ínterim só pude ver a fera me atacando pelo lado esquerda,
latindo e rosnando fortemente. A imagem que tenho em minha cabeça é
aquelas fotos que se tira em movimento em que somente o objeto
central está focado, todo o resto está tremido e fora do foco.
Parece que tudo foi tão rápido que só gravei aquela foto. Lembro de
me esgueirar para o lado para livrar minhas pernas de suas presas
assassinas afiadas.
A imagem seguinte foi o Zappe me dizendo que a gancheira do câmbio
estava quebrada e me pedindo a chave para cortar a corrente e
emendar numa marcha para tirarmos o câmbio e pedalar assim até o PC.
Aí comecei a falar coisas tipo:
- Eu acho que tá aí no bagageiro...
- Vamo Omar, pega logo! Disse o Guaraci
- Mas essa não é a minha bicicleta, esse não é o meu farol...
- Omar, tu tá bem? Tu viu que tu caiu?
- Eu caí? Eu durmi?
- Não, o cachorro avançou e tu caiu?
- Eu caí?
- Tu tá bem cara?
- Como é o teu nome?
- Omar!
Como é o nome da tua mulher?
- Bea.
- Qual é a marca da tua bici?
- Specialized?
- Mas eu caí?
- É cara tu não viu o cachorro?
- Eu dormi!?

Naquele momento os dois se olharam e se assustaram, eu já estava
numa tremedeira de frio. Eles me levaram para uma parada de ônibus e
puxaram os cobertores térmicos de emergência e me enrolaram nele. Aí
que viram que meu capacete tinha uma fenda enorme no lado direito,
na altura da orelha. Por dentro ele também estava todo comprometido.
Nesse momento chegou o Rigone e seu pelotão e chamaram o resgate.
Eles aguardaram o resgate e me despacharam. Fi-los prometer que iam
terminar a prova e que iam me dar as medalhas, mas os 2 dois sem-
vergonha deram um pau até o PC, tomaram um café, avisaram da
desistência de todos e seguiram para a Unisc para pegar o carro e
depois ir para o Hospital. Eu estava bem, não sentia nada, somente
um pouco no cotovelo direito. Foi o tombo mais indolor que já
tivera. Tanto, que ainda fomos resgatar um outro cara mais adiante,
que estava com dor no pé. Ele veio o tempo todo reclamando da
vergonha de desistir e o fato de que prometera a medalha para a
filha. Eu acho que vergonha é a gente não tentar ou tentar sem
preparo e experiência. Saber o limite e desistir antes do pior é
inteligência e autoconhecimento. Só não falei isso para ele porque
estava com tanto sono que não tinha vontade de falar nada. Respondi
em monossílabos às perguntas dos dois.
Chegamos finalmente ao Hospital e eu tremia feito vara verde.
Ficaram apavorados com a minha tremedeira e a roupa molhada. Tirei
as roupas de cima e me colocaram sobre os lençóis térmicos que
trouxera junto dois acolchoados. A enfermeira não achava a minha
veia na dobra e me enfiou uma agulha quase na altura do pulso. Deram-
me um soro aquecido para me re-hidratar e aquecer. Bem que o Faccin
poderia fornecer um sorinho para a gente levar pendurado na bike.
Hidratação direta na veia, jóia. Acho que vou adaptar um gancho na
minha bike. Será que pode?
Enquanto o médico examinava minha cabeça, olhos e reações a
enfermeira Eliana falava comigo:
- Mas o que vocês andam fazendo com essa friagem? Expliquei tudo e
ela disse que tinha um cunhado que também gostava dessas
loucuragens. Perguntei se ele era de Santa Cruz e ela disse que não,
era de Bento. Perguntei o nome dele e ela me disse: Walter Migowski.
Impressionado disse que ele era meu primo, na verdade casado com a
Denise, minha prima.
Bom, para encurtar a história, tomei meio litro de soro quentinho,
me aqueci. Dormi um pouco, porque eles me acordavam a casa 15
minutos, para ver se eu não tinha tido nenhum chilique. Depois de
ver que eu estava bem o médico me liberou, pois nem galo ou dor de
cabeça eu tive.
O velho Faccin ficou comigo o tempo todo e me deu um baita apoio.
Foi genial. Não me surpreendeu, pois já conheço a hospitalidade e
jeito especial de nos tratar da Família Faccin e quando estou num
evento organizado por eles, sei que posso pedalar tranqüilo por que
eles fazem de tudo para que tudo dê certo.
Quero mencionar também a eficácia do capacete da marca Bell.
Excelente. Estava com ele bem preso à cabeça. Os tirantes são fortes
e não se rompem facilmente. O capacete rachou, mostrando que ele
absorveu totalmente o impacto, sem deixar qualquer seqüela física em
minha cabeça. Se tive um apagão de memória foi pela desaceleração,
mas nem perdi os sentidos. Não tive dor de cabeça depois e estou
ótimo. No outro dia não parecia que tinha sofrido uma queda a não
ser pelo cotovelo e o ombro que me doíam um pouco. Nem lembrei de
tomar um relaxante muscular ou anti-inflamatório.
Gostaria de mencionar também a atitude de companheirismo dos meus 2
baita parceiros: o Zappe e o Guaraci. Agente costuma brincar sobre o
que separa os homens dos guris, mas a gente tem que saber com que a
gente pode arriscar o couro e esses dois são o tipo de caras que se
me convidarem para ir para o inferno eu vou, pois sei que na hora do
aperto e precisar, não precisarei nem dizer nada, porque ali do
lado estará a mão forte e inarredável de amigos de sangue.
Por isso, galera, se quiserem fazer o 300 de Caxias, é só me chama
que a bike já está quase pronta, pois eu já estou prontinho pra
outra indiada!

Valeu Zappe e Guaraci! Faccin e Cia., Audaxiosos que manifestaram
sua solidariedade e aos médicos e enfermeiras do Hospital de Santa
Cruz o meu muito obrigado pelo carinho e colo.
E ao Zorro e seu irresponsável dono que se prepare, porque não
pretendo descontar no pobre animal, mas pretendo fazer seu dono
nunca mais esquecer o que é responsabilidade. O Dr. Guaraci já tem
minha procuração!

PS : Ao cair estava com 152km pedalados e há 8:32h

Abraços

Omar Torriani

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